Segunda, 25 Fevereiro 2013 08:43

Professor Rogério Calia fala sobre as recomendações da Comissão Pró-Calouro

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Em entrevista, o professor do Departamento de Administração, Rogério Calia, membro da Comissão Pró-Calouro FEA-RP fala sobre as recomendações com relação ao trote na Faculdade, desafios e os próximos passos. Quem quiser pode ainda acessar o artigo de opinião do professor disponível neste link.

 

Qual sua avaliação sobre a repercussão das recomendações da Comissão Pró-Calouro até agora?
A repercussão foi intensa. Vieram críticas e vieram reações emocionais: ambas válidas. Uma crítica não é apenas uma manifestação de discordância. Uma crítica é uma reflexão racional que explica o motivo da discordância. As reações emocionais contribuíram menos para a nossa aprendizagem, mas são válidas. Válidas, por serem psicologicamente reais e legítimas, além de darem pistas de que a análise não teve a representatividade de todos os stakeholders. Stakeholders com gestão explícita foram consultados. Alguns stakeholders com gestão realizada em redes informais difusas, nem tinham sido identificadas. Um dos méritos da repercussão foi explicitar tais stakeholders. Além disso, as reações emocionais mostraram claramente quão divertido é o trote para os que não se sentiram humilhados e mostraram claramente quão humilhantes são os trotes para os que consideram que foram forçados a fazer "brincadeiras" contra a própria vontade. O que mais contribuiu para o nosso aprendizado sobre o trote, foram as várias críticas pertinentes que recebemos: nos ajudaram muito a descobrir que não conhecíamos muita coisa sobre o trote. Também descobrimos que, nas condições atuais, é praticamente impossível obtermos uma concordância sobre os trotes, porque as pessoas partem de premissas e pressupostos diametralmente opostos. As opiniões partem de premissas diferentes porque temos uma enorme limitação de informações relevantes sobre os fatos. Notei que, em geral, as pessoas que nos criticaram mais enfaticamente acreditavam piamente que os trotes não causaram abusos nem humilhações ou que a severidade destas consequências não é grave. O core business da FEA-RP é ensino e pesquisa. Não somos especialistas em "segurança de eventos". Isso significa que não temos processos e funcionários treinados em serviços de segurança em eventos. Pior do que isso: não temos acesso a tecnologias e procedimentos para o registro e documentação de abusos e humilhações em trotes. Quando não há disponibilidade de informação sobre os fatos, não é possível uma gestão por evidências: resta a gestão por retórica. Adoraríamos que os alunos que amam os trotes nos tivessem passado informação confiável sobre as ocorrências, severidade, frequência e detectabilidade dos riscos de humilhação e abusos em trotes e festas de recepção. Mas isso não ocorreu. Sem informações fornecidas pelos reais organizadores dos trotes, tivemos que buscar dados diretamente com os funcionários, professores e terceirizados que se defrontaram com as consequências negativas dos trotes e festas de recepção. Estas pessoas nos listaram casos de falha: um veterano ameaçou um calouro com rastelo em 2012, casos de mãe telefonando para se queixarem de coma alcoólico de filhos, calouro ferido no trote do boliche (como a gestão de risco é reativa, foi necessário o ferimento para que se eliminasse esta modalidade de trote) e presença de droga ilícita no estacionamento da faculdade durante uma festa de recepção. Essas informações vindas de funcionários, professores e terceirizados foram as informações decisivas. Somaram-se a elas informações que já dispúnhamos sobre humilhações, obtidas por meio de diálogos com alunos de três das cinco turmas de calouros: vários relataram que foram forçados ou coagidos a fazer o trote do cuecão, disquete e palitinho contra a própria vontade. Estas foram as falhas internas: apenas uma peça no quebra-cabeças do quadro geral sobre os riscos em jogo. Ficou mais fácil dialogar com os alunos que compreenderam conceitos elementares de gestão de riscos. A nossa análise de risco foi alimentada por informações dos nossos trotes passados e por informações dos trotes das demais unidades do campus. Não identificamos nenhuma prova racional de que nossa unidade fosse imune às falhas ocorridas em outras unidades. As variáveis em jogo são simplesmente as mesmas em relação a risco e prestação de contas (accountability). Novamente, a coleta de dados sobre as falhas ocorridas no campus nos indicaram que a severidade das consequências não é baixa. Houve casos de vandalismo e porte de bebidas destiladas proibidas no campus. Unidades receberam mídia negativa no programa Fantástico da Globo e GloboNews. Houve caso de pai de aluna vir armado ao trote no nosso campus no ano seguinte à tragédia de um aluno ter morrido afogado na Medicina em São Paulo. O que levaria um familiar a querer defender sua filha com as próprias mãos, caso necessário? Não sei, mas imagino que esse pai interpretou que os alunos organizadores dos trotes e a USP não estavam bem preparados (naquela época) para garantir a segurança de sua filha. Diálogos com vários familiares durante as nossas matrículas, me deixaram claro que muitos continuam inseguros. Além de informação sobre abusos e humilhações, tentamos buscar compreensão sobre restrições impostas à FEA-RP pela sociedade.Ficou mais fácil dialogar com os alunos que compreenderam que temos que cumprir com restrições legais. Quem é favorável a trotes claramente ilegais? Pergunte a um advogado o que significa um veterano forçar um calouro a dar dinheiro para ter seu tênis de volta. Pergunte ao procurador do campus ou aos diretores das unidades, o motivo de não querermos bebidas alcoólicas no campus. Pergunte a um advogado como a lei interpreta o ato de puxar a cueca de um calouro até rasgar no corpo dele. Ficou mais fácil dialogar com os alunos que compreenderam conceitos elementares de gestão de ética organizacional. A aplicação da definição operacional de humilhação (harassment) é óbvia: O calouro foi humilhado, se teve que aceitar uma modalidade específica de trote contra a sua própria vontade. Difícil de compreender e usar esta definição? Ela é usada rotineiramente nas organizações que realizam a gestão de ética.Qual é a severidade destas falhas para o bem estar do calouro, para a reputação da faculdade, para a qualidade do ambiente de respeito à dignidade de todos na nossa faculdade? Aqui também as percepções são divergentes. Os que se sentem co-responsáveis tanto pela diversão, quanto pela segurança das pessoas, concordaram comigo que a severidade destas falhas dos trotes demanda medidas preventivas.

 

Quais foram os desafios nesta primeira semana?
Dialogar, dialogar e dialogar. Pelo diálogo compreendemos que, para muita gente, o trote é um sucesso, porque promove interação, inaugura amizades, diverte e motiva. É o que afirmam alunos, ex-alunos e professores que tiveram experiências maravilhosas com o trote: não se sentiram humilhadas pelas brincadeiras e quando optaram, por exemplo, em não participar do trote do cuecão ou do trote do disquete, foram respeitados pelos veteranos. Pelo diálogo também conseguimos obter apoio a medidas nada populares. Vários alunos concordaram com nossa opção pela filmagem quando souberam que em outras unidades foram utilizadas medidas para punir todo um grupo, quando não se manifestam os indivíduos que cometeram os abusos. A filmagem é a garantia para que não sejam punidas pessoas que não causaram distorções.

 

As medidas foram recebidas com crítica por parte de alunos. Isso já era esperado?
Era esperado, mas não nesta intensidade. Nós tínhamos conversado com o Centro Acadêmico e Atlética. Mas não tinha ficado claro que quem manda no trote não são as organizações estudantis, mas uma rede informal de estudantes especializados em gerar diversão. O único problema é a "infiltração" nesta rede informal por alguns poucos (mas impactantes) indivíduos que não respeitam limites, nem a dignidade de calouros. Muitos se sentem co-responsáveis pelo sucesso da diversão e pela formação de novas amizades, poucos, bem poucos (só conheci um) se responsabilizam por algum abuso ou humilhação. A gestão atual do trote tem cara "na alegria", mas é desprovida de semblante e identidade "na tristeza".

 

Quais os próximos passos da Comissão?
Eu me questiono se o papel da comissão ainda é viável. Como empreender "segurança de eventos" numa instituição cujo core business não é segurança, nem eventos? Como reduzir humilhações, sem contar com os recursos materiais, tecnológicos e humanos para exercer a gestão dos riscos nos trotes? E, para piorar, o trote é amado por uns (que consideram uma das tradições mais importantes da FEA-RP) e odiado pelos que se consideram vítimas dos abusos. Por fim, não existe interlocutor definido. Em nome da diversão e da descontração, a execução dos trotes é realizada por "líderes" que surgem aqui e ali ao acaso: qualquer veterano disposto a dar comandos fortes aos calouros é aceito como legitimo, independentemente de respeitar ou não respeitar as escolhas do calouro sobre em que "brincadeiras" ele quer participar e em quais, não. Em dezenas de unidades e faculdades, me parece haver um padrão de reatividade: "Deixe rolar. Quando ocorrer um acidente e quando surgir mídia negativa, daí todos terão que aceitar a imposição de regras duras". Na minha visão, esse triste destino dos trotes é uma condenação à auto- extinção. Esse padrão me parece injusto com milhares de pessoas que se divertem e fazem amigos sem humilhar ninguém e sem causar danos às faculdades. Esse padrão surgiu, porque os valores dos stakeholders-chave (mídia, empresas organizações da sociedade civil) ficaram mais rigorosos ao longo do tempo quanto às humilhações. Não me parece que a reflexão dos que amam os trotes acompanhou essa tendência. Alunos com vocação profissional para marketing podem ajudar muito. O conceito de "miopia de marketing" ajuda a explicar como muitas empresas de disquete faliram porque se identificaram com um meio (o disquete) e não com um propósito (armazenagem eletrônica de dados portátil). Os fabricantes de pen-drive souberam construir a sua identidade, a sua tradição, com foco no propósito e não no meio. O trote do disquete, por exemplo: será que essa modalidade de trote é realmente essencial para a venerada tradição dos trotes na FEA-RP? O trote do disquete é um meio ou um propósito nesta tradição de risadas, adrenalina e amizades? A resposta virá de alunos inovadores que não se limitam a imitar modalidades de trote obsoletas, por serem baseadas no paradigma da humilhação e criadas há décadas por gente que não entendia nada de liderança e nem de networking.O que reverteria este desnecessário e caricaturesco "enxerto" de diversão com agressão? Competência de gestão de risco de abusos e humilhações e noções básicas de ética organizacional. Acredito que a única saída para mantermos diversão sem humilhações é os alunos assumirem uma auto-gestão mais completa: excelência em planejamento, organização e execução é bom; mas gestão e auto-gestão não existem sem a dimensão "controle". Autonomia funciona quando vem acompanhada de prestação de contas (accountability). Me coloco à disposição dos alunos que queiram inovar e criar um novo modelo competente de auto-gestão dos trotes: turbinado pela diversão e imune a abusos.

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